Fazendo o curso de Convalidação do diploma de Bacharel em Teologia, estudei o texto que segue abaixo, achei muito interessante e resolvi transcrevê-lo, com as devidas referências.
A
Larva e a Borboleta (Notas sobre as [im]possibilidades do Protestantismo no
interior da cultura brasileira )
Por: Zwinglio M. Dias
“ No segredo da larva delicada
A borboleta mora,
Antes que veja a luz, que estenda as asas,
Que surja fora! “(Gonçalves Dias)
“Os protestantes vinham chegando com suas
múltiples
denominações, situando-se lado a lado e em
pequenas
comunidades, as quais, apesar da aparente
unidade de
fé, na realidade apresentavam características
de concorrência.
Ao contrário do monolitismo Católico,
os Protestantes já chegavam divididos.”
(Antonio G. Mendonça)
“Toda esperança trás em si um gérmen de
religião, mas
nem toda religião é germinadora de esperança
.” (E. Bloch)
“O Protestantismo acabou!” repetia, saudosa,
minha mãe, cada vez que a visitava, queixando-se da parafernália de
instrumentos musicais (guitarra elétrica, bateria e quejandos) que hoje ocupa o
espaço anteriormente destinado à mesa eucarística no santuário de muitas
igrejas ditas evangélicas. “Agora não há mais diferenças entre os crentes”,
continua ela, “todos estão atrás de milagres, há muita gritaria e barulho nos
cultos, e ser presbiteriano ou pentecostal é, praticamente, a mesma coisa!” “Os
belos hinos de outrora foram substituídos pelas musiquinhas ritmadas aprendidas
nos programas de TV. Ser crente não faz mais diferença...”
Esta reação de uma antiga presbiteriana,
criada na mais severa tradição do pietismo puritano, moralista e asceta, aponta
para um dos fenômenos religiosos mais significativos ocorridos no Brasil, mas
não somente aqui, nas últimas décadas. Será que os Protestantes ainda o são ?
Pelo menos em termos de nomenclatura identitária parece que não. Preferem
auto-denominarem-se “evangélicos”, por oposição ao Romano Catolicismo que ainda
é considerado como uma expressão pagã do Cristianismo. Pouca, ou melhor, quase
nenhuma notícia têm da Reforma do século XVI e dos valores teológicos e
humanistas que esta alavancou e que vieram a cimentar os caminhos da
Modernidade.
Assim,mais que nunca, a expressão
‘Protestantismo” deixou de ser unívoca. Se para o público em geral a expressão se
presta para designar os cristãos não-romanos-católicos, ela está longe de ser
aceita passivamente pelas diferentes correntes que compõem o espectro
eclesiológico oriundo da Reforma Protestante do século XV. A emergência dos
movimentos Pentecostais, nos inícios do século XX, caudatários, sem dúvida, de
outros movimentos nascidos na Europa e na América do Norte a partir do século
XVII, com sua ênfase anti-racionalista e de grande fervor religioso-emocional,
ao adaptarem-se ao substrato religioso da cultura latino-americana e,
particularmente, da brasileira, trouxeram consigo uma complicação ainda maior.
Com isso a expressão “Protestantismo” tornou-se absolutamente insuficiente para
caracterizar e enfeixar as multifacetadas variantes das alternativas eclesiológicas
cristãs ao Romano Catolicismo em nosso continente.
A partir de sua implantação e desenvolvimento
no interior das diferentes formações sócio-culturais da América Latina outros
apelativos, como “Evangélicos” e “Crentes”, ganharam a preferência de diferentes
famílias confessionais ao ponto da expressão “Protestante” perder não apenas
seu conteúdo semântico como sua própria referência histórica. No caso
brasileiro isto se deveu, em grande parte, à refração cultural sofrida pelas
versões norte-americanas do Protestantismo aqui implantadas, que não foram
capazes de assumir, plenamente, os valores e as formas culturais próprias do
ethos cultural-religioso brasileiro.
Em todo caso, na ausência de uma expressão
mais abrangente, falaremos de Protestantismo de forma genérica e plural
chamando sempre a atenção para as distinções que se fazem, forçosamente,
necessárias.
Os historiadores e estudiosos dessa
manifestação religiosa dentro do Cristianismo distinguem, no Brasil, três
vertentes principais: o Protestantismo de Migração, o Protestantismo de Missão
e os Movimentos Pentecostais. Outras duas vertentes se acrescentarão mais
tarde, especialmente, a partir da segunda metade do século XX, como resultado
da interação das primeiras com o imaginário religioso característico do
universo cultural do continente, tendo como pano de fundo as transformações
socio-econômicas e políticas do período. Estas duas novas e tardias
manifestações estão diretamente referidas ao processo de expansão dos
Pentecostalismos. Segundo a tipologia sugerida por J. Bittencourt Filho
trata-se do Pentecostalismo Autônomo (consagrado pelo sociólogo Ricardo Mariano
como Neopentecostalismo) e do Neodenominacionalismo (aquelas formações
religiosas de corte tradicional marcadas pela ênfase na chamada renovação
espiritual-carismática e também conhecidas como pentecostalizadas, assim como
os movimentos responsáveis pelo surgimento das comunidades evangélicas
independentes das estruturas denominacionais ). As duas primeiras vertentes, em
geral, são englobadas sob a denominação de Protestantismo histórico.
No que se refere aos Movimentos Pentecostais
há dúvidas quanto à legitimidade de sua classificação como formas
eclesiológicas Protestantes. Porém, dada a sua importância no espectro
religioso do continente, e seu inegável parentesco com determinadas expressões
do Protestantismo de Missão não temos como não considerá-los como parte da
grande família do Protestantismo latino-americano.
Dados os limites deste texto não nos
ocuparemos com a descrição detalhada dos aspectos identitários característicos
das famílias confessionais (ou denominacionais) que compõem estes segmentos
básicos que estão na origem do pluralismo Protestante que hoje gravita com
intensidade no interior do campo religioso latino-americano. Naturalmente,
nosso enfoque privilegiará o contexto cultural-religioso brasileiro, no qual se
encontram, atualmente, cerca de 50% das famílias eclesiásticas Protestantes
presentes na América Latina.
No primeiro momento desta exposição
procuraremos apresentar uma análise sucinta, de caráter mais socio-histórico,
acerca da chegada do Protestantismo em nossas latitudes para, em seguida, num
segundo momento, oferecer alguns comentários a respeito de sua interação com a
cultura religiosa de nossas sociedades na medida em que suas expressões
eclesiásticas deram origem a formas alternativas de religiosidade que se
manifestam numa mescla estonteante de emancipação individualista, autoritarismo
e visão mágica do mundo. Por outro lado desejamos sublinhar as debilidades das
versões eclesiológicas protestantes aqui implantadas que não souberam, ou não
puderam mesmo, resistir à antropofagia cultural dos trópicos, indigenizando-se,
(hoje se diz inculturando-se) ao abandonarem os conteúdos dos modelos
eclesiástico-pastorais exportados pelas metrópoles espirituais do norte do
hemisfério e assumirem os sonhos, os desejos e as carências vivenciados e
sentidos a partir das matrizes religioso-culturais do povo brasileiro construídas,
tanto positiva quanto negativamente, na resistência ao cruel e desumano
processo colonizador que, por outros modos, continua ainda em vigência.
I- Os soldados de Cristo ocupam o continente
abandonado
As Igrejas e sociedades missionárias européias
e norte-americanas levaram muito tempo para assumir a América Latina como um
território de missão tão importante quanto a Ásia e a África. Só depois de uma
intensa campanha nos dois lados do Atlântico Norte, que tinha como lema a
ocupação missionária do continente abandonado, é que a empresa missionária
euro-americana voltou seus olhos para a região centro e sul-americana. Ainda
assim com muita reticência. A Conferência Missionária de Edinburgo, em 1910,
excluiu a participação dos missionários que por aqui atuavam e o Congresso do
Panamá, em 1916, foi convocado como reação a esta exclusão. O renomado
missionário escocês John Mackay, com significativa presença no Peru, a partir
de 1916, criou a expressão continente abandonado e tornou-se um dos principais
defensores da presença missionária no continente. O fato da América Latina ser
considerada um continente cristianizado pelo Romano-catolicismo e não
significar quase nada, em termos econômicos e políticos, para europeus e
norte-americanos, estava por trás da reticência das grandes missões de fins do
século XVIII e inícios do século XIX. Por outro lado, a expansão dos interesses
econômicos e políticos da Grã-Bretanha e o crescente interesse norte-americano
de manter sob seu controle a região ao sul do Rio Grande vão abrir as portas,
de par em par, para as tentativas protestantes de conquista da região.
a) O Protestantismo dos imigrantes...
O Protestantismo de Imigração, nas primeiras
décadas de sua implantação, caracterizou-se , principalmente, como uma forma de
religião étnica, uma vez que chegou como parte do acervo cultural do imigrante
europeu. Este imigrante aqui chegou como resultado do projeto liberal do
Império de importar mão-de-obra européia para fazer frente ao esgotamento do
modelo escravista de produção e, ao mesmo tempo, garantir a hegemonia branca
por meio do embranquecimento ou, como se dizia, na época, do
"aprimoramento da raça". Enquanto as colônias de imigrantes alemães,
principalmente no sul do país e no Espírito Santo, se mantiveram culturalmente
isoladas num entorno caracteristicamente rural, esse tipo de Protestantismo foi
capaz de resistir à cultura dominante durante décadas consolidando um ethos
religioso profundamente referido aos elementos característicos da Reforma
Luterana.
Neste ponto cabe registrar que os Anglicanos
da primeira hora e os Reformados de origem holandesa, em número
consideravelmente menor, são contados também como expressões deste tipo de
Protestantismo. Os Anglicanos, na verdade, foram os primeiros a chegar em
diferentes regiões da América Latina. No caso brasileiro eles se estabelecem
após o decreto de D. João VI, de abertura dos portos brasileiros ao comércio
internacional, uma vez que a Inglaterra instalou burocracias nos principais
portos exportadores do país. Assim, os funcionários ingleses foram contemplados
com a permissão para o exercício de sua religião. Em razão disso é que foi
construído o primeiro templo protestante no país, em l821, na cidade de Recife,
para atender às demandas religiosas dos portuários ingleses daquela cidade.
Mais para o final do século missionários Anglicanos, de origem norte-americana,
começaram a chegar instalando-se, preferencialmente, no sul do país e
imprimindo uma característica mais "evangelística" a esta igreja.
Os imigrante holandeses, à semelhança dos
alemães, vão estabelecer suas comunidades religiosas, de corte calvinista, no
interior de suas colônias, em sua maior parte no Estado do Paraná que, mais
tarde, vão se constituir na Igreja Reformada do Brasil. A transformação
econômica e socio-política da sociedade brasileira a partir de meados do século
XX, com o intenso processo de urbanização que gerou, enfraqueceu os traços
culturais que ancoravam este tipo de Protestantismo expondo-o às influências da
cultura dominante. Numericamente hegemônico no interior do Protestantismo
Histórico o Luteranismo, como as demais igrejas do mesmo tipo, vê-se hoje
sujeito às mesmas influências desagregadoras que assediam as diferentes
famílias do Protestantismo de Missão.
b) O Protestantismo dos missionários...
O Protestantismo de Missão, chega à América
Latina e , em particular, ao Brasil, como parte do projeto expansionista das
nações norte-atlânticas, especialmente dos Estados Unidos. Apesar da roupagem
Pietista, que concentra a relação com o Transcendente numa experiência
místico-subjetiva, o Protestantismo de Missão aqui chegou nas asas do
liberalismo já consolidado em sua sociedade de origem, apresentando-se como um
desafio à sociedade brasileira, então escravista, aristocrática e conservadora.
Seu conteúdo teológico, embora caudatário das principais formulações da Reforma
do século XVI, hipertrofiou a dimensão pessoal da salvação legitimando, com
isso, o individualismo característico do liberalismo.
Dadas as características quase feudais da
sociedade brasileira, onde não havia espaço para o exercício mínimo da
cidadania, o Protestantismo de Missão vai funcionar, a princípio, como um
elemento de ruptura e transformação social ao fazer coincidir seu discurso
teológico anti-romano católico com as premissas básicas do modelo liberal de
sociedade, antagônico, portanto, à estrutura socio-política e econômica do
país.
Ao transformar Romanos-católicos em
Protestantes este tipo de Protestantismo estava, aparentemente, lançando as
bases para a formação de um novo modelo de cidadão no país: moderno, burguês,
liberal; responsável por si mesmo e pela construção de uma nova sociedade. A
ênfase na educação e na erradicação do analfabetismo, por si só, já
demonstravam os alcances da nova proposta eclesiológica emergente no país a
partir da segunda metade do século XIX. Tratava-se, entretanto, de um projeto
contraditório e de curta duração. Bastou que a sociedade brasileira se
integrasse ao processo de modernização do mundo ocidental, para que as
carências deste projeto se tornassem evidentes.
Preso a uma concepção ingênua de sociedade,
que não levava em conta as interações entre os grupos sociais e as gritantes
contradições de classe, o Protestantismo de Missão, caracteristicamente, não
foi capaz de perceber a natureza peculiar e própria da formação socio-cultural
brasileira que a distinguia da sua congênere norte-americana .. O ideal
societário proclamado por meio de sua mensagem teológico-doutrinária não
encontrou ressonância suficiente que lhe proporcionasse o desempenho de um
papel transformador significativo no âmbito socio-cultural e político nacional.
Contribuiu para isto, e muito, sua incapacidade de inculturação, revelada no
rechaço de tudo aquilo que constituía, na realidade, o ethos característico da
cultura latino-americana em geral e, em particular da brasileira, mas que era
entendido como conteúdo próprio do Romano-catolicismo. Razão porque as igrejas
do Protestantismo de Missão se caracterizaram, por décadas, como espaços
deculturizadores de frações descontentes e frustradas dos setores médios da
sociedade em função de sua impotência social e política. Acrescente-se ademais
que a proposta eclesiológica, com seu concomitante projeto socio-político, dado
seu rigorismo ético-moralista, pouco a pouco começou a perder sua capacidade de
produção de sentido para os setores médios aos quais o Protestantismo de Missão
preferencialmente, se dirigia, na medida em que a modernização das sociedades
latino-americanas avançava, especialmente a partir dos anos posteriores à II
Guerra mundial.
Incapaz de perceber as mudanças que começaram
a sacudir e transformar a sociedade brasileira, com o advento da industrialização
e o vertiginoso e caótico processo de urbanização, o Protestantismo de Missão
vai congelar sua visão de no mundo e sua mensagem religiosa perdendo, assim,
seus interlocutores preferenciais, anquilosando-se e se transformando numa
subcultura de refúgio para segmentos melhor situados economicamente nos setores
populares e na pequena classe média, ávidos de ascensão social, porém
objetivamente incapacitados de alcançá-la
Entretanto nem tudo foi perdido nesse
processo de transplante e inserção do Protestantismo de missão na realidade
socio-cultural latino-americana e brasileira. Os ideais democráticos e a ênfase
na cidadania responsável geraram alguns resultados positivos que precisam ser
resgatados. É verdade que em proporção bem menor do que se esperava. Mesmo
assim deixaram sua marca no processo de construção da consciência de cidadania
no interior de nossas sociedades.
c) O Protestantismo iluminista: uma
metamorfose tropical ?
Antonio G. Mendonça trabalhando com os
conceitos de “situação-limite” e “reserva religiosa” de P. Tillich, em sua
análise da gravitação histórica do Protestantismo lembra que, para este autor,
o Protestantismo “ao se ajustar constantemente à cultura e assumir com ela
perigosos compromissos. Só pode sobreviver graças a sua ‘reserva religiosa’
dinamizadora nas ‘situações limite’ ”.
Para Mendonça “a mensagem dos missionários
protestantes pode ser vista como a “reserva religiosa” do Protestantismo em
meio ao canhonheio das correntes científicas, filosóficas e sociológicas que
compunham o liberalismo do século XIX .Essa “reserva religiosa” encontrou um
receptor em “situação limite”, quer dizer, um extrato da população brasileira
sem rumo e sem horizonte, à margem das leis e da sociedade. Aí ela, a mensagem,
caiu bem. Mas, a “reserva religiosa” inicial enrijeceu-se e ideologizou-se no
fundamentalismo e invadiu o Protestantismo brasileiro e, este, por sua vez,
superando suas condições sociais iniciais de “situação limite” descansou no
conforto da pequena burguesia urbana.” Segundo ainda este autor o
Protestantismo histórico não foi capaz de sustentar sua “reserva religiosa“ e
perceber as novas “situações limites” que se criavam com o incremento da urbanização,
quando a população se concentrava nas cidades e anelava por propostas
plausíveis de organização e reestruturação simbólica que a mística e a
espiritualidade lhes podiam oferecer. O Movimento Pentecostal, presente na
sociedade brasileira desde a segunda década do século, assumiu esta “reserva
religiosa” na medida em que integrou em sua mensagem salvacionista, escoimada
do enrijecido racionalismo do Protestantismo histórico, os conteúdos
simbólicos, místicos e mágicos daquilo que J. Bittencourt Filho denominou de
“Matriz Religiosa Brasileira”.
Desenvolvendo-se nos grandes aglomerados
urbanos, em meio às massas de trabalhadores (i)migrantes, as Igrejas do
Movimento Pentecostal conheceram acelerado crescimento numérico a partir da
década de 50 complexificando-se, desde então, numa teia de formas
organizacionais as mais distintas. Aí se combinaram a herança do messianismo
milenarista oriundo da espiritualidade do Protestantismo histórico e o
substrato religioso da cultura brasileira, também eivado do milenarismo
subjacente ao Catolicismo popular, num encontro feliz, ainda mais que regado
com o, a principio, admirado, mas nem sempre desejado, rigorismo moralista do
Protestantismo de Missão, hoje a caminho de sair de cena, especialmente nas
formações eclesiológicas recentes do Movimento Pentecostal.
Na segunda metade do século XX vamos observar
o Movimento Pentecostal avançando com ímpeto no interior de uma sociedade
brasileira em processo de desenvolvimento socio-econômico desigual e perverso
que privilegia, via uma modernização seletiva, as velhas estruturas de poder
econômico e político ao mesmo tempo em que sacrifica, pela exclusão econômica e
a marginalização política a grande maioria da população do país. Exposta a uma
luta desigual e cruel pela sobrevivência esta população se vê tangida para os
centros urbanos em busca de trabalho onde é tolhida num processo de urbanização
caótico e desumano. É entre essa população em permanente aflição, desgarrada de
seus valores mais caros que a mensagem Pentecostal vai deitar raízes oferecendo
toda sorte de lenitivos para o sofrimento e estruturas de sentido para os
desorientados mas sem atentar, no entanto, para as causas reais que produzem
continuadamente o mal estar social que caracteriza a sociedade como um todo. Por
outro lado esta mensagem, em sua interação com a cultura dos segmentos por ela
atingidos entrou num processo de adaptação e transformação permanente que,
pouco a pouco, foi-lhe escoimando de todos aqueles elementos de difícil ou
impossível adaptação. Como isso podemos arriscar a dizer que a religiosidade
Pentecostal hoje, deitada no “berço esplendido” da religiosidade tradicional
brasileira, acabou por nacionalizar (culturalmente falando), definitivamente, o
que restou do Protestantismo em seu choque com a cultura brasileira.
No que se refere às experiências vividas em
outras nações latino-americanas a história não é muito diferente. Tanto nos
países do Caribe como naqueles banhados pelas águas do Pacífico, com maior ou
menor intensidade que no caso brasileiro, as mesmas vertentes se fizeram
presentes enfrentando dificuldades similares. O Pentecostalismo chileno, por
exemplo, com uma história muito peculiar, hoje abrange mais de 15% da população
do país, superando o brasileiro em relação ao total da população.
Estas considerações críticas, acerca da
realidade das institucionalidades protestantes entre nós, não nos devem levar à
conclusão precipitada e injusta de que os equívocos e contradições vivenciados
pelos primeiros imigrantes protestantes, missionários e seus seguidores
constituíram um grande engodo ou um erro histórico que só trouxe divisões e
confusão para os segmentos da população brasileira que com eles se
identificaram. Em seu momento, e da maneira que lhes era possível perceber, os
primeiros protestantes significaram um momento novo dentro da história
brasileira e latino-americana. Podemos não concordar com a proposta de
sociedade que trouxeram, mas não podemos deixar de reconhecer a importância que
tiveram na construção de um espírito democrático, na defesa da liberdade
individual e no sonho de uma sociedade de oportunidades iguais para todos em
meio a uma sociedade aristocrática, escravocrata e autoritária. Se seus
continuadores não foram fiéis a esta visão, isto já é outra história...
Importa destacar, também, que os primeiros
protestantes jamais foram unívocos. Tendências teológicas e políticas
diferentes e, mesmo, estratégicas, grassavam entre eles. Mas todos, em maior ou
menor grau, sofreram as agruras da perseguição pública, do descrédito, da
desconsideração humana e da humilhação. Isto, no entanto, não os torna melhores
do que foram. Mas são dignos de receber a nossa honra e a nossa gratidão pela
paixão e pelo amor com que se entregaram à obra de implantar a experiência
protestante na América Latina.
II – O que faltou na bagagem dos Imigrantes e
dos Missionários ?
a) A Igreja dos missionários e imigrantes
Como sublinhamos anteriormente, o
Protestantismo que chega ao Brasil não é mais o Protestantismo da Reforma, mas
a versão nuançada desenvolvida pelas Igrejas norte-americanas, marcada pela
cultura daquele povo, depois de mais de três séculos. O mesmo aconteceu com o
Protestantismo dos imigrantes que representa muito mais a cultura religiosa de
seus povos do que os conteúdos teológicos dos pais fundadores. Recebemos dos
missionários e dos imigrantes a mensagem da Reforma envolta nas formas
culturais/religiosas que, através dos tempos se foram plasmando em suas
sociedades. Ou dito de outro modo, recebemos alguns modelos de igrejas, ou
seja, formas já institucionalizadas de igrejas, moldadas segundo as
necessidades e condicionamentos culturais característicos de seus países de
origem. Nesse longo processo de construção de formas institucionais muita coisa
se perdeu ou foi adaptada ao sabor dos interesses de diferentes grupos sociais
que, como não podia ser de outra maneira, sufocaram ou deram outro sentido às
formulações iniciais dos Reformadores. A herança da Reforma chega até nós
desgastada e diminuída pelo processo de institucionalização experimentado até
então. Não recebemos a proposta de Igreja de Lutero e de Calvino, mas o modelo
eclesiástico, formalmente atribuído a eles, mas construído pelos seus
intérpretes. O que experimentamos, especialmente com o movimento missionário do
século XIX, foi um transplante de uma determinada forma eclesiástica do
Protestantismo. Um modelo larvar, fechado e absolutizado, acabado, entendido
como a verdadeira forma da Igreja de Cristo, impermeável à mudanças, voltado
sempre para a sua auto-reprodução, incapaz de se abrir para as outras culturas
e de perceber nelas a presença do Espírito criador e transformador do Deus
bíblico. Os povos ditos evangelizados deveriam ser convertidos a essa maneira
de ser cristão, não tinham nada a oferecer. O Espírito só podia lhes falar na
linguagem dessa igreja.
b) A reinvenção da Igreja no processo da
Reforma do século XVI
A compreensão do que venha a ser a natureza e
função da Igreja Cristã é a questão fundamental ao redor da qual se estabelece
a separação entre cristãos protestantes e cristãos romanos-católicos. Para os
herdeiros de Lutero e Calvino a Igreja é, muito mais do que uma instituição, um
evento, um acontecimento novo que brota no meio da história, como resultado da
ação agregadora do Espírito de Deus, de reunir aqueles e aquelas sensibilizados
pela proposta de humanização plena da vida revelada na experiência de Jesus de
Nazaré. Trata-se, portanto, de uma comunidade de homens e mulheres que
respondem à vocação do Espírito e procuram plasmar suas vidas consoante os
valores do Reino anunciado por Jesus. É, por isso mesmo, um momento segundo no
processo salvífico, que só acontece depois que a Boa Nova é acolhida. E isto é
assim porque faz parte da economia da salvação dirigida pelo próprio Deus e não
depende de nenhuma ação intencional e meritória por parte dos humanos. Deus age
no meio da história e a Igreja, a comunidade dos seguidores de Jesus, seria uma
das conseqüências dessa ação. Ou seja, a Igreja, embora chamada à existência
por uma iniciativa divina acontece no meio da história, é histórica, resultado
da interação entre humanos, portanto precária e provisória. Daí a expressão
cunhada pelos reformados: ecclesia reformata et semper reformanda.
Esta concepção fere frontalmente a, até
então, prevalecente concepção medieval que entendia a ação de Deus no mundo
acontecendo, primordialmente, por meio da mediação Igreja que seria, então, o
meio de salvação por excelência, portanto, destinada a co-ordenar a vida do
mundo, revelar a manifestação de Deus em Cristo e decidir acerca do futuro da
humanidade. Portanto a igreja como controladora da revelação de Deus é momento
primeiro na economia da salvação. Daí a famosa expressão latina: extra ecclesia
nulla salus.
Ambas estruturas de compreensão da natureza
da Igreja se baseavam, por sua vez, numa compreensão divergente do Sagrado. A
Igreja Medieval construiu sua concepção de divindade fortemente apoiada na
filosofia aristotélica, entendendo Deus como um Ser Supremo que ocupava a cima
de uma grande estrutura hierárquica de seres. Como Criador, este Ser supremo
estabeleceu os lugares específicos para cada coisa e para cada ser numa
gradação perene e fixa e cada ordem de coisas e seres trazia dentro de si esta
mesma hierarquização. Aplicada à sociedade humana este esquema de compreensão
da realidade estabelecia uma continuidade perene entre o reino divino e tudo o
mais compreendido como criação. Quanto mais alta a posição hierárquica, mais
próxima do Ser Superior e maior a autoridade e poder de quem a ocupa. Nesta
concepção a Igreja mantinha,, por razões óbvias, uma posição privilegiada, pois
possuía mais “ser” que as demais ordens. Por outro lado, nessa estrutura não
havia lugar para o Deus pessoal de que nos fala a Bíblia, mas apenas para o
Deus autoridade suprema que governava a ordem do mundo.
Em sua leitura atenta das Escrituras Lutero
e, depois dele, Calvino, vão descobrir que não existe esta continuidade entre o
Criador e as diferentes ordens da criação. Deus é o “Totalmente Outro”, que não
podemos conhecer, é o “extra nos” que, no entanto, toma a iniciativa de vir até
nós revelando-nos sua vontade de nos redimir ao nos permitir o dom da vida. É um
Deus que não estabelece intermediários e que age permanentemente no mundo, no
interior da história, que quer a transformação de sua criação. Ou seja, o Deus
que encontraram nas páginas da Bíblia era um Deus diferente daquele proclamado
pela estrutura eclesiástica que então conheciam. Um Deus pessoal que está
sempre criando novas coisas, chamando homens e mulheres para participarem do
grande drama da redenção da vida que é a meta de seu Reino. Um Deus, portanto,
voltado para o futuro, agindo livremente no tempo, radicalmente diferente do
Deus concebido como prisioneiro dos espaços sagrados e dependente da mediação
eclesiástica medieval.
Desta compreensão só podia nascer uma
eclesiologia totalmente diferente da até então vigente. Se Deus atua na
história e guia o mundo pelos mais diferentes e inusitados caminhos em direção
aos objetivos de seu Reino a igreja só cumpre seu papel na medida em que
responde com fidelidade a esse processo redentor. Ou seja, quando percebe e
persegue as novas possibilidades abertas em diferentes momentos da história
para tornar verdadeiramente humana a vida de todos os humanos.
Nas palavras de um historiador: “Lutero mudou
a igreja de vizinha no espaço para profeta no tempo. A igreja devia estar não a
cem passos do palácio ou da prefeitura, mas a cem horas ou dias ou meses à
frente de qualquer transação efetuada nessas casas.” Nesta perspectiva não
havia lugar para hierarquias de nenhuma ordem, todos os homens e mulheres são
iguais perante Deus, pecadores e necessitados de seu poder redentor. A forma
externa da igreja, sua organização institucional faz parte de sua existência no
mundo sim, mas se trata de algo provisório, precário e, portanto, mutante. A
sua essência é sua disposição de seguir as pegadas do Espírito. Tillich vai cunhar
a expressão o “espírito protestante”, para definir este modo de ser no mundo
que expressa “o protesto Divino e humano contra toda pretensão de absoluto
manifestada por uma realidade relativa, mesmo se esta pretensão for levantada
por uma igreja protestante”. Ou, em outras palavras, trata-se da não atribuição
de um caráter sagrado e permanente a qualquer tipo de estrutura, instituição ou
realizações outras produzidas pelo espírito humano.
A intuição genial dos Reformadores foi
perceber e assumir a condição humana nos seus limites, precariedades e
fragilidades. Fundamentados nos valores que apreenderam das Escrituras
descobriram, muito antes das ciências humanas fundadas pelo Iluminismo, que o
ser humano é um ser de carências, de desejos jamais satisfeitos e que procura
na auto-afirmação constante a superação de suas necessidades existenciais. Aqui
se funda sua compreensão de pecado, o homo encurvatus in se de Lutero, cuja
superação só pode ser encontrada no modelo plasmado por Jesus do um-homem-para-os-outros,
conforme a formulação de Bonhoeffer, o ex-cêntrico, aquele que tem sua vida
centrada no bem estar do outro e não em si mesmo.
O Espírito Protestante, também chamado de
Princípio Protestante se constitui, assim num acicate que relembra à comunidade
dos crentes a necessidade constante de renovação, transformação para poder
acompanhar a ação redentora de Deus no mundo. Sua operacionalização, no
entanto, é sempre obstaculizada pelas tendências estáticas de auto-reprodução
presentes na institucionalidade eclesiástica, pois a comunidade dos crentes ao
ganhar forma dentro das culturas tende a ser uma instituição social como outra
qualquer. Nem mesmo os Reformadores escaparam das armadilhas geradas pelo poder
institucional. Lutero acabou criando uma igreja ligada aos poderes do Estado,
praticamente igual a que ele tanto condenara no Romano Catolicismo. Calvino vai
se voltar de tal maneira para a prática política que se torna preso dos jogos
da política até se transformar no Governador de Genebra. As Igrejas
norte-americanas que para cá vieram estavam ligadas, de uma forma ou de outra
aos valores da democracia liberal capitalista e vão relacionar esse projeto
político com sua pregação do Evangelho. Estas experiências históricas nos
revelam que as estruturas eclesiásticas, em todo tempo e em qualquer lugar,
asfixiam e escondem o espírito protestante na medida em que tomam a si próprias
e seu passado como modelo que deve ser repetido e deixam de buscar no meio da
história e no futuro que se avizinha os sinais da ação de Deus no mundo. O
Protestantismo foi um grito de liberdade no interior da grande catedral
medieval que a todos submetia e calava. Um grito que ecoou um outro lançado
quinze séculos antes do alto de uma cruz no calvário...
Epílogo
Para que o Evangelho ressuscite os humanos
para sua verdadeira e plena vida é preciso que as estruturas eclesiásticas se
transformem, dêem lugar a novas formas de organização... Ecclesia reformata et
semper reformanda ! Ou seja como obra humana precária, incompleta e frágil é
preciso que morram . E elas tem morrido ao longo da história, embora muitas não
se tenham dado conta disso e continuem insepultas, olhando para o passado e
fechando os olhos para o futuro onde Deus se encontra. Para que a borboleta
alcance a vida é preciso que a larva morra... .
Um enorme desafio se coloca diante de nós:
sermos capazes de olhar para a vida e para o mundo com o mesmo olhar de Jesus
que Roger Garaudy descreve da seguinte maneira: “ Viver sua vida, seu
despojamento, cria um novo olhar, profético, um olhar que não se apega ao
parcial, mas que nele descobre o todo e o futuro que aponta.(...) Ver a
borboleta na larva, a santa na prostituta, a águia no ovo, o irmão em meu
próximo e distante e, no sorriso efêmero do jasmim, a ressurreição eterna da
primavera. Tal é o olhar de Jesus sobre o mundo.”
Zwinglio M. Dias - Professor no Programa de
Pós-graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora
(MG). Pastor da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil e Editor da revista “Tempo
e Presença” de “KOINONIA – Presença Ecumênica e Serviço”.
Alves, R., Dogmatismo e Tolerância, S. Paulo:
Paulinas, l982, pg. 113 e ssgs.
Expressão usada por Leonard para referir-se
ao Mov. Pentecostal. Cf. Leonard, E.G., O Protestantismo Brasileiro, S. Paulo:
ASTE, s/d; O Iluminismo num Protestantismo de Constituição Recente, S. Paulo:
Programa Ecumênico de Pós-graduação em Ciências da Religião, l988
Mendonça, A . G., Discussão sobre a
viabilidade do Protestantismo histórico no Brasil, in NOTAS, Jornal de Ciências
da Religião, Ano I – n. 3, S. Bernardo do Campo, SP: l994, pg. 5
Bittencourt Filho, J., Matriz Religiosa
Brasileira – Notas Ecumênicas, in Tempo e Presença, nº 264, Rio de Janeiro:
CEDI, 1992. Pgs. 49-51 E. Rosenstock-Huessy apud Shaull, R., A Reforma
Protestante e a Teologia da Libertação, S. Paulo: Pendão Real, 1993. Pg. 93
Tillich, P., The Protestant Era, Chicago: The
University of Chicago Press. Pg.163
Tilich, P. A Era Protestante, S. B. do Campo,
IEPG, l992, pg.l8l e sgs.
Garaudy, R. Deus é necessário? Rio de
Janeiro: Zahar Ed., 1995. Pg.117
Disponível em:
http://ead.faculdadeunida.com.br/virtual/pluginfile.php/5207/mod_resource/content/1/protestantismo_e_cultura_brasileira_-_zwinglio_mota_dias.htm
02/09/2013.
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