Estudos da Torá
Parashá nº 04 – Vayera (E apareceu)
Bereshit/Gênesis 18:1-22:24
Haftará (separação) 2Rs 4:1-37 e
B’rit Hadashah (Aliança Renovada) Lc 17:26-37; Rm 9:6-9
O Favor do Eterno.
Há momentos em que a alma humana se vê mergulhada em silêncio e medo. Há dias em que o coração se inquieta, e a mente se pergunta: “Por que o Eterno se calou comigo?” Quando, na verdade, é nesse aparente silêncio que Ele mais fala. A parashá Vayera revela uma das faces mais sublimes e, ao mesmo tempo, mais misteriosas do relacionamento entre o Eterno e o homem: o contraste entre a ira que desperta e o favor que vivifica. Entre o rugido do leão e o orvalho sobre a erva, o rei Shelomoh nos ensina que o favor do Eterno é vida, e Sua ira, ainda que terrível, é muitas vezes um chamado à transformação, uma oportunidade de fazer teshuvá.
Não há favor sem prova, nem vida sem confronto interior. Assim como o sol precisa ferir a terra para que ela floresça, também o Eterno permite que Sua luz exponha as sombras do homem, não para destruí-lo, mas para restaurá-lo. É o que aprenderemos neste estudo da Parashá Vayerá.
RESUMO DA PARASHÁ DA SEMANA
Na parashá Vayera, o Eterno aparece a Avraham nas planícies de Mamrê, enquanto ele está sentado à entrada de sua tenda. Avraham vê três malachim (mensageiros) e, com grande hospitalidade, corre para recebê-los, oferece-lhes água, pão e um bezerro preparado com pressa. Um dos mensageiros anuncia que Sarah terá um filho, mesmo em sua velhice. Sarah ouve e ri, mas o Eterno confirma que nada é impossível para Ele.
Em seguida, o Eterno revela a Avraham que pretende destruir Sedom e Amorah por causa de sua grande maldade. Avraham intercede, pedindo que as cidades sejam poupadas se nelas houver justos. O Eterno aceita sua intercessão, prometendo poupar o lugar se encontrar dez justos. Dois malachim vão até Sedom, onde Lot os recebe em sua casa e os protege dos homens violentos da cidade. Ao amanhecer, eles tiram Lot, sua esposa e suas filhas, e o mandam fugir. O Eterno faz chover enxofre e fogo sobre Sedom e Amorah, destruindo-as completamente. A esposa de Lot olha para trás e se torna uma estátua de sal.
Lot se refugia em uma caverna com suas filhas, que, pensando que toda a terra havia sido destruída, embriagam o pai e geram filhos dele: Moav e Amon, antepassados dos moavitas e amonitas.
Avraham segue sua jornada e se estabelece em Gerar. O rei Avimelech toma Sarah, mas o Eterno o adverte em sonho, e ele a devolve ilesa. Em tempo determinado, Sarah dá à luz Yitschaq, o filho da promessa. Oito dias depois, Avraham o circuncida conforme o mandamento do Eterno.
Quando Yitschaq cresce, Sarah vê Ishmael zombando e pede que Avraham o mande embora com Hagar. O Eterno diz a Avraham que escute Sarah, pois Yitschaq é o filho da promessa, mas também promete fazer de Ishmael uma grande nação. No deserto, Hagar e Ishmael quase morrem de sede, mas o Eterno ouve o clamor do menino e lhes mostra um poço.
Por fim, o Eterno prova Avraham, pedindo que ofereça Yitschaq em sacrifício no monte Moriá. Avraham obedece sem hesitar, mas no momento em que ergue o cutelo, o Eterno o impede e provê um carneiro preso pelos chifres. Por causa de sua obediência, o Eterno reafirma a bênção sobre Avraham e sua descendência, prometendo que seriam tão numerosos como as estrelas dos shamaym e como a areia do mar.
Esta parashá revela a justiça, a misericórdia e a fidelidade do Eterno, mostrando que Ele prova os corações daqueles que confiam n’Ele e cumpre tudo o que promete
ESTUDO DO TEXTO DA PARASHÁ
Vamos iniciar o estudo dessa porção da Torá com um texto do TaNaK que está intimamente ligado ao princípio demonstrado nessa parashá.
A ira de um rei é como o rugido de um leão; mas seu favor é como orvalho no campo. Mishlei (Pv) 19:12.
Segundo Bruno Summa, em Sha’arei Toráh Bereshit 2, Sh’lomoh Hamelech, o Rei Salomão, usa duas hipérboles para explicar o comportamento de um rei frente aos homens que causam sua ira e frente aos homens que merecem o seu favor. E portanto, através dessas palavras, o sábio Sh’lomoh, estaria ensinando que o Eterno, durante Sua ira, se comporta de duas formas diferentes. A primeira, ocorre quando Ele se ira com alguém e não toma nenhuma ação contra essa pessoa imediatamente, nessa ocasião, essa pessoa experienciará medo e uma certa falta de paz interna comparáveis ao indivíduo que sente medo ao ouvir o rugido de um leão. A segunda ocorre quando Hashem toma alguma ação contra o homem em sua ira; nesse caso o resultado não é outro senão a morte, conforme Salomão também ensina:
A ira do rei é o mensageiro da morte. Mishlei (Pv) 16:14
Assim entendemos que, se por um lado a ira de Hashem causa medo e morte, de outro, Seu favor traz paz e vida. Essa comparação descreve a relação entre o Eterno e o homem. Os textos de Mishlei que vimos acima, descrevem a dualidade do caráter divino com clareza. Nessa simples metáfora, descrita pelo sábio, o Eterno se revela como Rei, justo e compassivo, cujos caminhos não são de destruição, mas de correção e amor. O rugido do leão, citado por Summa, anuncia o temor e o juízo; o orvalho traz refrigério e vida. Assim, a ira de HaShem é a expressão de Sua justiça, e Seu favor, expressão de misericórdia.
Na parashá Vayera, vemos ambos os aspectos manifestos:
- A ira do Eterno se manifesta sobre Sedom e Amorah, onde a corrupção do homem havia chegado ao limite (Bereshit 18–19).
- O favor do Eterno repousa sobre Avraham, Sarah, Lot, e sobre todos aqueles que ainda podem ser alcançados pela Sua compaixão. O Eterno diz a Avraham:
O clamor de Sedom e Amorah é grande, e o seu pecado é muito grave. Bereshit 18:20.
E ainda assim, o Eterno ouve a intercessão de Avraham, o que mostra que Sua ira não é destruição imediata, mas um chamado ao arrependimento. Tal como o rugido do leão desperta o medo, o Eterno desperta o homem pela angústia, pelo temor e pela consciência da necessidade de se voltar a Ele.
A parashá Vayerá, cujo nome significa “E apareceu”, nos mostra essa manifestação do Eterno diante de Avraham, o homem que aprendeu a viver entre o temor e o favor.
O texto nos conduz da ternura da promessa feita a Sarah até a severa destruição de Sedom e Amorah. Entre a risada de um nascimento e o fogo que consome as cidades corruptas, compreendemos que a justiça e a misericórdia do Eterno não são opostas, mas duas faces de um mesmo propósito, isto é, restaurar o homem à Sua presença.
1. A ira que Desperta
Ao contrário do que muitos podem pensar, a ira do Eterno não é capricho divino, mas consequência da ordem violada, do mandamento quebrado. Quando o homem se afasta do caminho da verdade, o Eterno se revela como o rugido do leão, despertando pelo temor aquele que se tornou surdo ao chamado da consciência. Foi assim em Sedom, quando o clamor do oprimido chegou até os shamaym.
O clamor de Sedom e Amorah é grande, e o seu pecado é muito grave. Bereshit 18:20
Antes de agir, o Eterno revela a Avraham o que está para fazer. Essa revelação é, por si só, um ato de misericórdia, um convite para que o justo interceda. Eis aí, o chamado para o justo cumprir seu papel. A ira do Eterno não se manifesta sem aviso, mas como um rugido que antecede a destruição, como o toque do shofar avisando sobre o exército inimigo se aproximando, dando ao homem a chance de acordar e se preparar.
Esse mesmo rugido ecoa, por exemplo, na vida de Yonah, quando tenta fugir da missão divina e é lançado ao mar e dali ao ventre do peixe; em Eliyahu, que, abatido, se esconde na caverna; e em Gideon, que teme sua própria incapacidade diante do chamado. Todos eles provaram da “morte” física ou psicológica, e do medo profundo, não como castigo, mas como instrumento de despertar.
O medo, a ansiedade, o colapso da alma, quando não resultam da maldade, mas do afastamento inconsciente da vontade do Eterno, são muitas vezes, sinais de Seu chamado. O Eterno ruge dentro do coração humano, para que ele volte ao caminho, e reconheça que há um propósito maior que o próprio entendimento.
2. O Favor que Vivifica
Para todo aquele que se arrepende, após o rugido vem o orvalho. Após a noite vem a aurora. Assim o Eterno se revelou a Avraham em Vayera:
E a ele apareceu o Eterno. Bereshit 18:1
Essa inversão da ordem, colocando “a ele” antes do Nome do Eterno, não é casual, como sempre dizemos, nada na Torá é aleatório, e quando ocorre certas alterações, devemos buscar mais. Antes, o Eterno aparecia a Avraham; agora, Ele aparece por meio de Avraham. Isso significa que, depois da obediência ao mandamento do Brit Milah, Avraham se torna um canal, uma morada da presença divina na terra.
Bruno Summa, ao comentar este verso inicial de Vayerá, diz que esses versos abordam grandes mistérios que justificam tudo que ocorreria na vida de Avraham desse momento em diante; o autor continua e diz que, logo no primeiro verso a Torá nos mostra o estado espiritual ou de obediência, que Avraham foi capaz de alcançar e como um homem comum, que segue seu exemplo é capaz de atingir à mesma elevação que ele atingiu.
Por isso, podemos entender que o favor do Eterno não é apenas bênção exterior, mas é transformação interior. É quando o homem, purificado pela obediência, se torna reflexo do Criador. Avraham, ao oferecer hospitalidade aos três mensageiros, ao interceder por Sedom, ao entregar Yitschaq no monte Moriá, demonstra que o favor divino não se conquista com palavras, mas com confiança firme e ação.
O profeta Hoshea confirma esse padrão:
Vinde, e tornemos ao Eterno; porque Ele nos despedaçou, e nos sarará; feriu, e nos atará a ferida. Hoshea 6:1
Aquele que sente a dor da disciplina divina e faz teshuvá no lugar de se fechar, encontra a cura. O favor do Eterno é o orvalho que desce sobre o coração quebrantado, trazendo vida onde antes havia aridez.
3. O Propósito da Vida
Nessa sidrá ou parashá, vemos o favor do Eterno manifestar-se também em Sarah, que concebe Ytschak, cumprindo a promessa feita a Avraham. Percebemos a vida brotando, através de cura, onde antes havia esterilidade, o orvalho sobre a erva seca.
O mesmo que aconteceu quando Avraham obedece ao mandamento da Brit Milah, ela alcança o mais alto grau de ligação com o Eterno. Como vimos acima, ao obedecer as palavras do Eterno, o homem se torna recipiente da presença divina, um descanso para a Shekihnah nesta realidade. Como está escrito:
Habitarei entre eles, e serei o seu Elohim. Shemot 29:45
Quando o homem santifica seu corpo e sua conduta pelos mandamentos, torna-se um canal da vontade divina sobre a terra, agora e no futuro. Assim, o “favor do Rei” é a própria vida de conexão com o Eterno.
O rei David compreendeu esse segredo:
Porque a Sua ira dura apenas um momento, mas o Seu favor é para a vida. Tehillim 30:6
A vida, portanto, não é apenas existir, mas tornar-se morada do favor do Eterno. Cada mandamento observado, cada ato justo, cada pensamento puro, santifica uma parte do corpo e da alma, até que o homem inteiro se torne recipiente da vontade divina. Por isso, é tão importante refrearmos nossos desejos carnais, e rejeitarmos o que não é do agrado do Eterno.
Kohelet resume essa verdade com perfeição:
Teme a Elohim e guarda os Seus mandamentos, porque isto é a obrigação de todo homem. Kohelet 12:13
Não é uma tarefa restrita a um povo ou tempo; é a vocação universal do ser humano. Segundo Bruno Summa, na Torah existem 248 mandamentos positivos e 365 mandamentos negativos, da mesma forma que os rabinos afirmam que no corpo humano há 248 partes e 365 tendões, de forma metafórica. Isso mostra que cada mandamento observado por uma pessoa, leva a correspondente parte de seu corpo físico, a se tornar santo e purificado. Sobre isso, Eclesiastes nos diz: “tema a Adonai”, isso é, tema a não quebrar aos mandamentos negativos, e “observe aos Seus mandamentos”, isso é, tenha certeza em observar aos Seus mandamentos positivos da melhor forma possível, pois isso é a obrigação de todo homem. Aqui não diz “todo judeu”, nem “todo israelita”, nem “todo sacerdote”, mas diz “todo homem”, não há exclusão de quem deve observar a Torah. Assim, se o povo escolhido é Yisrael, todos devem adentrar a este povo.
Quando o homem vive de modo ético, humilde e obediente, ele se alinha à harmonia da criação. Ele deixa de ser inimigo da ordem divina e passa a ser instrumento de revelação do próprio Criador. Esse é o verdadeiro significado da vida, ser uma “carruagem” da Shekhinah, o local onde o favor do Eterno repousa e se manifesta neste mundo.
Os profetas constantemente repetem esse mesmo padrão: ira que desperta, misericórdia que restaura. Conforme já vimos acima em Hoshea 6:1–2. E em Yeshayahu, o mesmo tema:
Por um breve momento te deixei, mas com grandes misericórdias te recolherei. Yeshayahu 54:7
A ira do Eterno é sempre por um instante, pois Seu propósito é a restauração do homem à Sua vontade. Quando o povo se desvia, Ele “ruge como um leão”, conforme vemos através do profeta Hoshea:
Eles seguirão o Senhor; ele rugirá como leão. Quando ele rugir, os seus filhos virão tremendo desde o Ocidente. Oséias 11:10.
Perceba, o rugido não é para destruir, mas para chamar de volta os filhos dispersos.
Nos Escritos Nazarenos, Yeshua ensina o mesmo princípio, fiel ao TaNaK:
Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados. Mattityahu 5:4
Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Elohim. Mattityahu 5:8
O sofrimento ou a provação é a forma pela qual o Eterno desperta o homem para o arrependimento e a purificação. Shaul também declara:
A tristeza segundo Elohim produz arrependimento para a vida. 2 Co 7:10
E ainda:
Pois o Eterno disciplina aquele a quem ama. Hb 12:6
Assim, o favor do Rei, que é vida, vem após a disciplina, e a ira momentânea é o instrumento da misericórdia. A pureza não é ausência de erro, mas disposição constante de retornar ao caminho, de fazer teshuvá. O favor do Eterno repousa sobre aqueles que buscam o arrependimento e a retidão.
Então aprendemos que a “vida” não é apenas existência, mas a capacidade de se relacionar com o Eterno nesta realidade. Isso é coerente com as palavras do profeta:
Eu os criei para a Minha glória. Yeshayahu 43:7
E observe ainda, o ensino de Yeshua aos seus talmidim:
Assim brilhe a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem o vosso Pai que está nos shamaym. Mattityahu 5:16
O homem foi criado para refletir a glória do Eterno. Quem vive em conformidade com os mandamentos, tornando-se puro em corpo e ação, torna-se a morada da presença do Eterno, a carruagem da Shekhinah sobre a terra.
Concluindo nosso estudo, tivemos a oportunidade de entender que, o favor do Eterno é a respiração da alma humana. Ele não é o fim de uma jornada, mas o começo de uma nova forma de existir. É o orvalho que desce após a noite do medo, o alívio que vem depois do rugido.
A ira desperta, o favor transforma. O medo nos chama à consciência, mas o favor nos chama à comunhão. Ambos nascem do mesmo amor, pois o Eterno deseja que o homem viva, não apenas respire, mas cumpra o propósito pelo qual foi criado.
Quem sente o rugido e o transforma em busca, vive. Quem recebe o orvalho e o transforma em gratidão, floresce. E assim, cada um que teme o Eterno e guarda os Seus mandamentos se torna o descanso de Sua presença sobre a terra, o sinal vivo de que Sua ira dura apenas um momento, mas Seu favor é para a vida.
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Que o Eterno lhes abençoe.
Moshê Ben Yosef