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segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Protestantismo na cultura brasileira

Fazendo o curso de Convalidação do diploma de Bacharel em Teologia, estudei o texto que segue abaixo, achei muito interessante e resolvi transcrevê-lo, com as devidas referências.


A Larva e a Borboleta (Notas sobre as [im]possibilidades do Protestantismo no interior da cultura brasileira )
Por: Zwinglio M. Dias

“ No segredo da larva delicada
A borboleta mora,
Antes que veja a luz, que estenda as asas,
Que surja fora! “(Gonçalves Dias)


“Os protestantes vinham chegando com suas múltiples
denominações, situando-se lado a lado e em pequenas
comunidades, as quais, apesar da aparente unidade de
fé, na realidade apresentavam características de concorrência.
Ao contrário do monolitismo Católico,
os Protestantes já chegavam divididos.” (Antonio G. Mendonça)

“Toda esperança trás em si um gérmen de religião, mas
nem toda religião é germinadora de esperança .” (E. Bloch)

“O Protestantismo acabou!” repetia, saudosa, minha mãe, cada vez que a visitava, queixando-se da parafernália de instrumentos musicais (guitarra elétrica, bateria e quejandos) que hoje ocupa o espaço anteriormente destinado à mesa eucarística no santuário de muitas igrejas ditas evangélicas. “Agora não há mais diferenças entre os crentes”, continua ela, “todos estão atrás de milagres, há muita gritaria e barulho nos cultos, e ser presbiteriano ou pentecostal é, praticamente, a mesma coisa!” “Os belos hinos de outrora foram substituídos pelas musiquinhas ritmadas aprendidas nos programas de TV. Ser crente não faz mais diferença...”

Esta reação de uma antiga presbiteriana, criada na mais severa tradição do pietismo puritano, moralista e asceta, aponta para um dos fenômenos religiosos mais significativos ocorridos no Brasil, mas não somente aqui, nas últimas décadas. Será que os Protestantes ainda o são ? Pelo menos em termos de nomenclatura identitária parece que não. Preferem auto-denominarem-se “evangélicos”, por oposição ao Romano Catolicismo que ainda é considerado como uma expressão pagã do Cristianismo. Pouca, ou melhor, quase nenhuma notícia têm da Reforma do século XVI e dos valores teológicos e humanistas que esta alavancou e que vieram a cimentar os caminhos da Modernidade.

Assim,mais que nunca, a expressão ‘Protestantismo” deixou de ser unívoca. Se para o público em geral a expressão se presta para designar os cristãos não-romanos-católicos, ela está longe de ser aceita passivamente pelas diferentes correntes que compõem o espectro eclesiológico oriundo da Reforma Protestante do século XV. A emergência dos movimentos Pentecostais, nos inícios do século XX, caudatários, sem dúvida, de outros movimentos nascidos na Europa e na América do Norte a partir do século XVII, com sua ênfase anti-racionalista e de grande fervor religioso-emocional, ao adaptarem-se ao substrato religioso da cultura latino-americana e, particularmente, da brasileira, trouxeram consigo uma complicação ainda maior. Com isso a expressão “Protestantismo” tornou-se absolutamente insuficiente para caracterizar e enfeixar as multifacetadas variantes das alternativas eclesiológicas cristãs ao Romano Catolicismo em nosso continente.

A partir de sua implantação e desenvolvimento no interior das diferentes formações sócio-culturais da América Latina outros apelativos, como “Evangélicos” e “Crentes”, ganharam a preferência de diferentes famílias confessionais ao ponto da expressão “Protestante” perder não apenas seu conteúdo semântico como sua própria referência histórica. No caso brasileiro isto se deveu, em grande parte, à refração cultural sofrida pelas versões norte-americanas do Protestantismo aqui implantadas, que não foram capazes de assumir, plenamente, os valores e as formas culturais próprias do ethos cultural-religioso brasileiro.

Em todo caso, na ausência de uma expressão mais abrangente, falaremos de Protestantismo de forma genérica e plural chamando sempre a atenção para as distinções que se fazem, forçosamente, necessárias.

Os historiadores e estudiosos dessa manifestação religiosa dentro do Cristianismo distinguem, no Brasil, três vertentes principais: o Protestantismo de Migração, o Protestantismo de Missão e os Movimentos Pentecostais. Outras duas vertentes se acrescentarão mais tarde, especialmente, a partir da segunda metade do século XX, como resultado da interação das primeiras com o imaginário religioso característico do universo cultural do continente, tendo como pano de fundo as transformações socio-econômicas e políticas do período. Estas duas novas e tardias manifestações estão diretamente referidas ao processo de expansão dos Pentecostalismos. Segundo a tipologia sugerida por J. Bittencourt Filho trata-se do Pentecostalismo Autônomo (consagrado pelo sociólogo Ricardo Mariano como Neopentecostalismo) e do Neodenominacionalismo (aquelas formações religiosas de corte tradicional marcadas pela ênfase na chamada renovação espiritual-carismática e também conhecidas como pentecostalizadas, assim como os movimentos responsáveis pelo surgimento das comunidades evangélicas independentes das estruturas denominacionais ). As duas primeiras vertentes, em geral, são englobadas sob a denominação de Protestantismo histórico.

No que se refere aos Movimentos Pentecostais há dúvidas quanto à legitimidade de sua classificação como formas eclesiológicas Protestantes. Porém, dada a sua importância no espectro religioso do continente, e seu inegável parentesco com determinadas expressões do Protestantismo de Missão não temos como não considerá-los como parte da grande família do Protestantismo latino-americano.

Dados os limites deste texto não nos ocuparemos com a descrição detalhada dos aspectos identitários característicos das famílias confessionais (ou denominacionais) que compõem estes segmentos básicos que estão na origem do pluralismo Protestante que hoje gravita com intensidade no interior do campo religioso latino-americano. Naturalmente, nosso enfoque privilegiará o contexto cultural-religioso brasileiro, no qual se encontram, atualmente, cerca de 50% das famílias eclesiásticas Protestantes presentes na América Latina.

No primeiro momento desta exposição procuraremos apresentar uma análise sucinta, de caráter mais socio-histórico, acerca da chegada do Protestantismo em nossas latitudes para, em seguida, num segundo momento, oferecer alguns comentários a respeito de sua interação com a cultura religiosa de nossas sociedades na medida em que suas expressões eclesiásticas deram origem a formas alternativas de religiosidade que se manifestam numa mescla estonteante de emancipação individualista, autoritarismo e visão mágica do mundo. Por outro lado desejamos sublinhar as debilidades das versões eclesiológicas protestantes aqui implantadas que não souberam, ou não puderam mesmo, resistir à antropofagia cultural dos trópicos, indigenizando-se, (hoje se diz inculturando-se) ao abandonarem os conteúdos dos modelos eclesiástico-pastorais exportados pelas metrópoles espirituais do norte do hemisfério e assumirem os sonhos, os desejos e as carências vivenciados e sentidos a partir das matrizes religioso-culturais do povo brasileiro construídas, tanto positiva quanto negativamente, na resistência ao cruel e desumano processo colonizador que, por outros modos, continua ainda em vigência.

I- Os soldados de Cristo ocupam o continente abandonado

As Igrejas e sociedades missionárias européias e norte-americanas levaram muito tempo para assumir a América Latina como um território de missão tão importante quanto a Ásia e a África. Só depois de uma intensa campanha nos dois lados do Atlântico Norte, que tinha como lema a ocupação missionária do continente abandonado, é que a empresa missionária euro-americana voltou seus olhos para a região centro e sul-americana. Ainda assim com muita reticência. A Conferência Missionária de Edinburgo, em 1910, excluiu a participação dos missionários que por aqui atuavam e o Congresso do Panamá, em 1916, foi convocado como reação a esta exclusão. O renomado missionário escocês John Mackay, com significativa presença no Peru, a partir de 1916, criou a expressão continente abandonado e tornou-se um dos principais defensores da presença missionária no continente. O fato da América Latina ser considerada um continente cristianizado pelo Romano-catolicismo e não significar quase nada, em termos econômicos e políticos, para europeus e norte-americanos, estava por trás da reticência das grandes missões de fins do século XVIII e inícios do século XIX. Por outro lado, a expansão dos interesses econômicos e políticos da Grã-Bretanha e o crescente interesse norte-americano de manter sob seu controle a região ao sul do Rio Grande vão abrir as portas, de par em par, para as tentativas protestantes de conquista da região.

a) O Protestantismo dos imigrantes...
O Protestantismo de Imigração, nas primeiras décadas de sua implantação, caracterizou-se , principalmente, como uma forma de religião étnica, uma vez que chegou como parte do acervo cultural do imigrante europeu. Este imigrante aqui chegou como resultado do projeto liberal do Império de importar mão-de-obra européia para fazer frente ao esgotamento do modelo escravista de produção e, ao mesmo tempo, garantir a hegemonia branca por meio do embranquecimento ou, como se dizia, na época, do "aprimoramento da raça". Enquanto as colônias de imigrantes alemães, principalmente no sul do país e no Espírito Santo, se mantiveram culturalmente isoladas num entorno caracteristicamente rural, esse tipo de Protestantismo foi capaz de resistir à cultura dominante durante décadas consolidando um ethos religioso profundamente referido aos elementos característicos da Reforma Luterana.

Neste ponto cabe registrar que os Anglicanos da primeira hora e os Reformados de origem holandesa, em número consideravelmente menor, são contados também como expressões deste tipo de Protestantismo. Os Anglicanos, na verdade, foram os primeiros a chegar em diferentes regiões da América Latina. No caso brasileiro eles se estabelecem após o decreto de D. João VI, de abertura dos portos brasileiros ao comércio internacional, uma vez que a Inglaterra instalou burocracias nos principais portos exportadores do país. Assim, os funcionários ingleses foram contemplados com a permissão para o exercício de sua religião. Em razão disso é que foi construído o primeiro templo protestante no país, em l821, na cidade de Recife, para atender às demandas religiosas dos portuários ingleses daquela cidade. Mais para o final do século missionários Anglicanos, de origem norte-americana, começaram a chegar instalando-se, preferencialmente, no sul do país e imprimindo uma característica mais "evangelística" a esta igreja.

Os imigrante holandeses, à semelhança dos alemães, vão estabelecer suas comunidades religiosas, de corte calvinista, no interior de suas colônias, em sua maior parte no Estado do Paraná que, mais tarde, vão se constituir na Igreja Reformada do Brasil. A transformação econômica e socio-política da sociedade brasileira a partir de meados do século XX, com o intenso processo de urbanização que gerou, enfraqueceu os traços culturais que ancoravam este tipo de Protestantismo expondo-o às influências da cultura dominante. Numericamente hegemônico no interior do Protestantismo Histórico o Luteranismo, como as demais igrejas do mesmo tipo, vê-se hoje sujeito às mesmas influências desagregadoras que assediam as diferentes famílias do Protestantismo de Missão.

b) O Protestantismo dos missionários...
O Protestantismo de Missão, chega à América Latina e , em particular, ao Brasil, como parte do projeto expansionista das nações norte-atlânticas, especialmente dos Estados Unidos. Apesar da roupagem Pietista, que concentra a relação com o Transcendente numa experiência místico-subjetiva, o Protestantismo de Missão aqui chegou nas asas do liberalismo já consolidado em sua sociedade de origem, apresentando-se como um desafio à sociedade brasileira, então escravista, aristocrática e conservadora. Seu conteúdo teológico, embora caudatário das principais formulações da Reforma do século XVI, hipertrofiou a dimensão pessoal da salvação legitimando, com isso, o individualismo característico do liberalismo.

Dadas as características quase feudais da sociedade brasileira, onde não havia espaço para o exercício mínimo da cidadania, o Protestantismo de Missão vai funcionar, a princípio, como um elemento de ruptura e transformação social ao fazer coincidir seu discurso teológico anti-romano católico com as premissas básicas do modelo liberal de sociedade, antagônico, portanto, à estrutura socio-política e econômica do país.

Ao transformar Romanos-católicos em Protestantes este tipo de Protestantismo estava, aparentemente, lançando as bases para a formação de um novo modelo de cidadão no país: moderno, burguês, liberal; responsável por si mesmo e pela construção de uma nova sociedade. A ênfase na educação e na erradicação do analfabetismo, por si só, já demonstravam os alcances da nova proposta eclesiológica emergente no país a partir da segunda metade do século XIX. Tratava-se, entretanto, de um projeto contraditório e de curta duração. Bastou que a sociedade brasileira se integrasse ao processo de modernização do mundo ocidental, para que as carências deste projeto se tornassem evidentes.

Preso a uma concepção ingênua de sociedade, que não levava em conta as interações entre os grupos sociais e as gritantes contradições de classe, o Protestantismo de Missão, caracteristicamente, não foi capaz de perceber a natureza peculiar e própria da formação socio-cultural brasileira que a distinguia da sua congênere norte-americana .. O ideal societário proclamado por meio de sua mensagem teológico-doutrinária não encontrou ressonância suficiente que lhe proporcionasse o desempenho de um papel transformador significativo no âmbito socio-cultural e político nacional. Contribuiu para isto, e muito, sua incapacidade de inculturação, revelada no rechaço de tudo aquilo que constituía, na realidade, o ethos característico da cultura latino-americana em geral e, em particular da brasileira, mas que era entendido como conteúdo próprio do Romano-catolicismo. Razão porque as igrejas do Protestantismo de Missão se caracterizaram, por décadas, como espaços deculturizadores de frações descontentes e frustradas dos setores médios da sociedade em função de sua impotência social e política. Acrescente-se ademais que a proposta eclesiológica, com seu concomitante projeto socio-político, dado seu rigorismo ético-moralista, pouco a pouco começou a perder sua capacidade de produção de sentido para os setores médios aos quais o Protestantismo de Missão preferencialmente, se dirigia, na medida em que a modernização das sociedades latino-americanas avançava, especialmente a partir dos anos posteriores à II Guerra mundial.

Incapaz de perceber as mudanças que começaram a sacudir e transformar a sociedade brasileira, com o advento da industrialização e o vertiginoso e caótico processo de urbanização, o Protestantismo de Missão vai congelar sua visão de no mundo e sua mensagem religiosa perdendo, assim, seus interlocutores preferenciais, anquilosando-se e se transformando numa subcultura de refúgio para segmentos melhor situados economicamente nos setores populares e na pequena classe média, ávidos de ascensão social, porém objetivamente incapacitados de alcançá-la

Entretanto nem tudo foi perdido nesse processo de transplante e inserção do Protestantismo de missão na realidade socio-cultural latino-americana e brasileira. Os ideais democráticos e a ênfase na cidadania responsável geraram alguns resultados positivos que precisam ser resgatados. É verdade que em proporção bem menor do que se esperava. Mesmo assim deixaram sua marca no processo de construção da consciência de cidadania no interior de nossas sociedades.

c) O Protestantismo iluminista: uma metamorfose tropical ?
Antonio G. Mendonça trabalhando com os conceitos de “situação-limite” e “reserva religiosa” de P. Tillich, em sua análise da gravitação histórica do Protestantismo lembra que, para este autor, o Protestantismo “ao se ajustar constantemente à cultura e assumir com ela perigosos compromissos. Só pode sobreviver graças a sua ‘reserva religiosa’ dinamizadora nas ‘situações limite’ ”.

Para Mendonça “a mensagem dos missionários protestantes pode ser vista como a “reserva religiosa” do Protestantismo em meio ao canhonheio das correntes científicas, filosóficas e sociológicas que compunham o liberalismo do século XIX .Essa “reserva religiosa” encontrou um receptor em “situação limite”, quer dizer, um extrato da população brasileira sem rumo e sem horizonte, à margem das leis e da sociedade. Aí ela, a mensagem, caiu bem. Mas, a “reserva religiosa” inicial enrijeceu-se e ideologizou-se no fundamentalismo e invadiu o Protestantismo brasileiro e, este, por sua vez, superando suas condições sociais iniciais de “situação limite” descansou no conforto da pequena burguesia urbana.” Segundo ainda este autor o Protestantismo histórico não foi capaz de sustentar sua “reserva religiosa“ e perceber as novas “situações limites” que se criavam com o incremento da urbanização, quando a população se concentrava nas cidades e anelava por propostas plausíveis de organização e reestruturação simbólica que a mística e a espiritualidade lhes podiam oferecer. O Movimento Pentecostal, presente na sociedade brasileira desde a segunda década do século, assumiu esta “reserva religiosa” na medida em que integrou em sua mensagem salvacionista, escoimada do enrijecido racionalismo do Protestantismo histórico, os conteúdos simbólicos, místicos e mágicos daquilo que J. Bittencourt Filho denominou de “Matriz Religiosa Brasileira”.

Desenvolvendo-se nos grandes aglomerados urbanos, em meio às massas de trabalhadores (i)migrantes, as Igrejas do Movimento Pentecostal conheceram acelerado crescimento numérico a partir da década de 50 complexificando-se, desde então, numa teia de formas organizacionais as mais distintas. Aí se combinaram a herança do messianismo milenarista oriundo da espiritualidade do Protestantismo histórico e o substrato religioso da cultura brasileira, também eivado do milenarismo subjacente ao Catolicismo popular, num encontro feliz, ainda mais que regado com o, a principio, admirado, mas nem sempre desejado, rigorismo moralista do Protestantismo de Missão, hoje a caminho de sair de cena, especialmente nas formações eclesiológicas recentes do Movimento Pentecostal.

Na segunda metade do século XX vamos observar o Movimento Pentecostal avançando com ímpeto no interior de uma sociedade brasileira em processo de desenvolvimento socio-econômico desigual e perverso que privilegia, via uma modernização seletiva, as velhas estruturas de poder econômico e político ao mesmo tempo em que sacrifica, pela exclusão econômica e a marginalização política a grande maioria da população do país. Exposta a uma luta desigual e cruel pela sobrevivência esta população se vê tangida para os centros urbanos em busca de trabalho onde é tolhida num processo de urbanização caótico e desumano. É entre essa população em permanente aflição, desgarrada de seus valores mais caros que a mensagem Pentecostal vai deitar raízes oferecendo toda sorte de lenitivos para o sofrimento e estruturas de sentido para os desorientados mas sem atentar, no entanto, para as causas reais que produzem continuadamente o mal estar social que caracteriza a sociedade como um todo. Por outro lado esta mensagem, em sua interação com a cultura dos segmentos por ela atingidos entrou num processo de adaptação e transformação permanente que, pouco a pouco, foi-lhe escoimando de todos aqueles elementos de difícil ou impossível adaptação. Como isso podemos arriscar a dizer que a religiosidade Pentecostal hoje, deitada no “berço esplendido” da religiosidade tradicional brasileira, acabou por nacionalizar (culturalmente falando), definitivamente, o que restou do Protestantismo em seu choque com a cultura brasileira.

No que se refere às experiências vividas em outras nações latino-americanas a história não é muito diferente. Tanto nos países do Caribe como naqueles banhados pelas águas do Pacífico, com maior ou menor intensidade que no caso brasileiro, as mesmas vertentes se fizeram presentes enfrentando dificuldades similares. O Pentecostalismo chileno, por exemplo, com uma história muito peculiar, hoje abrange mais de 15% da população do país, superando o brasileiro em relação ao total da população.

Estas considerações críticas, acerca da realidade das institucionalidades protestantes entre nós, não nos devem levar à conclusão precipitada e injusta de que os equívocos e contradições vivenciados pelos primeiros imigrantes protestantes, missionários e seus seguidores constituíram um grande engodo ou um erro histórico que só trouxe divisões e confusão para os segmentos da população brasileira que com eles se identificaram. Em seu momento, e da maneira que lhes era possível perceber, os primeiros protestantes significaram um momento novo dentro da história brasileira e latino-americana. Podemos não concordar com a proposta de sociedade que trouxeram, mas não podemos deixar de reconhecer a importância que tiveram na construção de um espírito democrático, na defesa da liberdade individual e no sonho de uma sociedade de oportunidades iguais para todos em meio a uma sociedade aristocrática, escravocrata e autoritária. Se seus continuadores não foram fiéis a esta visão, isto já é outra história...

Importa destacar, também, que os primeiros protestantes jamais foram unívocos. Tendências teológicas e políticas diferentes e, mesmo, estratégicas, grassavam entre eles. Mas todos, em maior ou menor grau, sofreram as agruras da perseguição pública, do descrédito, da desconsideração humana e da humilhação. Isto, no entanto, não os torna melhores do que foram. Mas são dignos de receber a nossa honra e a nossa gratidão pela paixão e pelo amor com que se entregaram à obra de implantar a experiência protestante na América Latina.

II – O que faltou na bagagem dos Imigrantes e dos Missionários ?

a) A Igreja dos missionários e imigrantes
Como sublinhamos anteriormente, o Protestantismo que chega ao Brasil não é mais o Protestantismo da Reforma, mas a versão nuançada desenvolvida pelas Igrejas norte-americanas, marcada pela cultura daquele povo, depois de mais de três séculos. O mesmo aconteceu com o Protestantismo dos imigrantes que representa muito mais a cultura religiosa de seus povos do que os conteúdos teológicos dos pais fundadores. Recebemos dos missionários e dos imigrantes a mensagem da Reforma envolta nas formas culturais/religiosas que, através dos tempos se foram plasmando em suas sociedades. Ou dito de outro modo, recebemos alguns modelos de igrejas, ou seja, formas já institucionalizadas de igrejas, moldadas segundo as necessidades e condicionamentos culturais característicos de seus países de origem. Nesse longo processo de construção de formas institucionais muita coisa se perdeu ou foi adaptada ao sabor dos interesses de diferentes grupos sociais que, como não podia ser de outra maneira, sufocaram ou deram outro sentido às formulações iniciais dos Reformadores. A herança da Reforma chega até nós desgastada e diminuída pelo processo de institucionalização experimentado até então. Não recebemos a proposta de Igreja de Lutero e de Calvino, mas o modelo eclesiástico, formalmente atribuído a eles, mas construído pelos seus intérpretes. O que experimentamos, especialmente com o movimento missionário do século XIX, foi um transplante de uma determinada forma eclesiástica do Protestantismo. Um modelo larvar, fechado e absolutizado, acabado, entendido como a verdadeira forma da Igreja de Cristo, impermeável à mudanças, voltado sempre para a sua auto-reprodução, incapaz de se abrir para as outras culturas e de perceber nelas a presença do Espírito criador e transformador do Deus bíblico. Os povos ditos evangelizados deveriam ser convertidos a essa maneira de ser cristão, não tinham nada a oferecer. O Espírito só podia lhes falar na linguagem dessa igreja.

b) A reinvenção da Igreja no processo da Reforma do século XVI
A compreensão do que venha a ser a natureza e função da Igreja Cristã é a questão fundamental ao redor da qual se estabelece a separação entre cristãos protestantes e cristãos romanos-católicos. Para os herdeiros de Lutero e Calvino a Igreja é, muito mais do que uma instituição, um evento, um acontecimento novo que brota no meio da história, como resultado da ação agregadora do Espírito de Deus, de reunir aqueles e aquelas sensibilizados pela proposta de humanização plena da vida revelada na experiência de Jesus de Nazaré. Trata-se, portanto, de uma comunidade de homens e mulheres que respondem à vocação do Espírito e procuram plasmar suas vidas consoante os valores do Reino anunciado por Jesus. É, por isso mesmo, um momento segundo no processo salvífico, que só acontece depois que a Boa Nova é acolhida. E isto é assim porque faz parte da economia da salvação dirigida pelo próprio Deus e não depende de nenhuma ação intencional e meritória por parte dos humanos. Deus age no meio da história e a Igreja, a comunidade dos seguidores de Jesus, seria uma das conseqüências dessa ação. Ou seja, a Igreja, embora chamada à existência por uma iniciativa divina acontece no meio da história, é histórica, resultado da interação entre humanos, portanto precária e provisória. Daí a expressão cunhada pelos reformados: ecclesia reformata et semper reformanda.

Esta concepção fere frontalmente a, até então, prevalecente concepção medieval que entendia a ação de Deus no mundo acontecendo, primordialmente, por meio da mediação Igreja que seria, então, o meio de salvação por excelência, portanto, destinada a co-ordenar a vida do mundo, revelar a manifestação de Deus em Cristo e decidir acerca do futuro da humanidade. Portanto a igreja como controladora da revelação de Deus é momento primeiro na economia da salvação. Daí a famosa expressão latina: extra ecclesia nulla salus.

Ambas estruturas de compreensão da natureza da Igreja se baseavam, por sua vez, numa compreensão divergente do Sagrado. A Igreja Medieval construiu sua concepção de divindade fortemente apoiada na filosofia aristotélica, entendendo Deus como um Ser Supremo que ocupava a cima de uma grande estrutura hierárquica de seres. Como Criador, este Ser supremo estabeleceu os lugares específicos para cada coisa e para cada ser numa gradação perene e fixa e cada ordem de coisas e seres trazia dentro de si esta mesma hierarquização. Aplicada à sociedade humana este esquema de compreensão da realidade estabelecia uma continuidade perene entre o reino divino e tudo o mais compreendido como criação. Quanto mais alta a posição hierárquica, mais próxima do Ser Superior e maior a autoridade e poder de quem a ocupa. Nesta concepção a Igreja mantinha,, por razões óbvias, uma posição privilegiada, pois possuía mais “ser” que as demais ordens. Por outro lado, nessa estrutura não havia lugar para o Deus pessoal de que nos fala a Bíblia, mas apenas para o Deus autoridade suprema que governava a ordem do mundo.

Em sua leitura atenta das Escrituras Lutero e, depois dele, Calvino, vão descobrir que não existe esta continuidade entre o Criador e as diferentes ordens da criação. Deus é o “Totalmente Outro”, que não podemos conhecer, é o “extra nos” que, no entanto, toma a iniciativa de vir até nós revelando-nos sua vontade de nos redimir ao nos permitir o dom da vida. É um Deus que não estabelece intermediários e que age permanentemente no mundo, no interior da história, que quer a transformação de sua criação. Ou seja, o Deus que encontraram nas páginas da Bíblia era um Deus diferente daquele proclamado pela estrutura eclesiástica que então conheciam. Um Deus pessoal que está sempre criando novas coisas, chamando homens e mulheres para participarem do grande drama da redenção da vida que é a meta de seu Reino. Um Deus, portanto, voltado para o futuro, agindo livremente no tempo, radicalmente diferente do Deus concebido como prisioneiro dos espaços sagrados e dependente da mediação eclesiástica medieval.

Desta compreensão só podia nascer uma eclesiologia totalmente diferente da até então vigente. Se Deus atua na história e guia o mundo pelos mais diferentes e inusitados caminhos em direção aos objetivos de seu Reino a igreja só cumpre seu papel na medida em que responde com fidelidade a esse processo redentor. Ou seja, quando percebe e persegue as novas possibilidades abertas em diferentes momentos da história para tornar verdadeiramente humana a vida de todos os humanos.

Nas palavras de um historiador: “Lutero mudou a igreja de vizinha no espaço para profeta no tempo. A igreja devia estar não a cem passos do palácio ou da prefeitura, mas a cem horas ou dias ou meses à frente de qualquer transação efetuada nessas casas.” Nesta perspectiva não havia lugar para hierarquias de nenhuma ordem, todos os homens e mulheres são iguais perante Deus, pecadores e necessitados de seu poder redentor. A forma externa da igreja, sua organização institucional faz parte de sua existência no mundo sim, mas se trata de algo provisório, precário e, portanto, mutante. A sua essência é sua disposição de seguir as pegadas do Espírito. Tillich vai cunhar a expressão o “espírito protestante”, para definir este modo de ser no mundo que expressa “o protesto Divino e humano contra toda pretensão de absoluto manifestada por uma realidade relativa, mesmo se esta pretensão for levantada por uma igreja protestante”. Ou, em outras palavras, trata-se da não atribuição de um caráter sagrado e permanente a qualquer tipo de estrutura, instituição ou realizações outras produzidas pelo espírito humano.

A intuição genial dos Reformadores foi perceber e assumir a condição humana nos seus limites, precariedades e fragilidades. Fundamentados nos valores que apreenderam das Escrituras descobriram, muito antes das ciências humanas fundadas pelo Iluminismo, que o ser humano é um ser de carências, de desejos jamais satisfeitos e que procura na auto-afirmação constante a superação de suas necessidades existenciais. Aqui se funda sua compreensão de pecado, o homo encurvatus in se de Lutero, cuja superação só pode ser encontrada no modelo plasmado por Jesus do um-homem-para-os-outros, conforme a formulação de Bonhoeffer, o ex-cêntrico, aquele que tem sua vida centrada no bem estar do outro e não em si mesmo.

O Espírito Protestante, também chamado de Princípio Protestante se constitui, assim num acicate que relembra à comunidade dos crentes a necessidade constante de renovação, transformação para poder acompanhar a ação redentora de Deus no mundo. Sua operacionalização, no entanto, é sempre obstaculizada pelas tendências estáticas de auto-reprodução presentes na institucionalidade eclesiástica, pois a comunidade dos crentes ao ganhar forma dentro das culturas tende a ser uma instituição social como outra qualquer. Nem mesmo os Reformadores escaparam das armadilhas geradas pelo poder institucional. Lutero acabou criando uma igreja ligada aos poderes do Estado, praticamente igual a que ele tanto condenara no Romano Catolicismo. Calvino vai se voltar de tal maneira para a prática política que se torna preso dos jogos da política até se transformar no Governador de Genebra. As Igrejas norte-americanas que para cá vieram estavam ligadas, de uma forma ou de outra aos valores da democracia liberal capitalista e vão relacionar esse projeto político com sua pregação do Evangelho. Estas experiências históricas nos revelam que as estruturas eclesiásticas, em todo tempo e em qualquer lugar, asfixiam e escondem o espírito protestante na medida em que tomam a si próprias e seu passado como modelo que deve ser repetido e deixam de buscar no meio da história e no futuro que se avizinha os sinais da ação de Deus no mundo. O Protestantismo foi um grito de liberdade no interior da grande catedral medieval que a todos submetia e calava. Um grito que ecoou um outro lançado quinze séculos antes do alto de uma cruz no calvário...

Epílogo

Para que o Evangelho ressuscite os humanos para sua verdadeira e plena vida é preciso que as estruturas eclesiásticas se transformem, dêem lugar a novas formas de organização... Ecclesia reformata et semper reformanda ! Ou seja como obra humana precária, incompleta e frágil é preciso que morram . E elas tem morrido ao longo da história, embora muitas não se tenham dado conta disso e continuem insepultas, olhando para o passado e fechando os olhos para o futuro onde Deus se encontra. Para que a borboleta alcance a vida é preciso que a larva morra... .

Um enorme desafio se coloca diante de nós: sermos capazes de olhar para a vida e para o mundo com o mesmo olhar de Jesus que Roger Garaudy descreve da seguinte maneira: “ Viver sua vida, seu despojamento, cria um novo olhar, profético, um olhar que não se apega ao parcial, mas que nele descobre o todo e o futuro que aponta.(...) Ver a borboleta na larva, a santa na prostituta, a águia no ovo, o irmão em meu próximo e distante e, no sorriso efêmero do jasmim, a ressurreição eterna da primavera. Tal é o olhar de Jesus sobre o mundo.”

Zwinglio M. Dias - Professor no Programa de Pós-graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG). Pastor da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil e Editor da revista “Tempo e Presença” de “KOINONIA – Presença Ecumênica e Serviço”.

Alves, R., Dogmatismo e Tolerância, S. Paulo: Paulinas, l982, pg. 113 e ssgs.

Expressão usada por Leonard para referir-se ao Mov. Pentecostal. Cf. Leonard, E.G., O Protestantismo Brasileiro, S. Paulo: ASTE, s/d; O Iluminismo num Protestantismo de Constituição Recente, S. Paulo: Programa Ecumênico de Pós-graduação em Ciências da Religião, l988

Mendonça, A . G., Discussão sobre a viabilidade do Protestantismo histórico no Brasil, in NOTAS, Jornal de Ciências da Religião, Ano I – n. 3, S. Bernardo do Campo, SP: l994, pg. 5

Bittencourt Filho, J., Matriz Religiosa Brasileira – Notas Ecumênicas, in Tempo e Presença, nº 264, Rio de Janeiro: CEDI, 1992. Pgs. 49-51 E. Rosenstock-Huessy apud Shaull, R., A Reforma Protestante e a Teologia da Libertação, S. Paulo: Pendão Real, 1993. Pg. 93

Tillich, P., The Protestant Era, Chicago: The University of Chicago Press. Pg.163

Tilich, P. A Era Protestante, S. B. do Campo, IEPG, l992, pg.l8l e sgs.

Garaudy, R. Deus é necessário? Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1995. Pg.117

Disponível em: 
http://ead.faculdadeunida.com.br/virtual/pluginfile.php/5207/mod_resource/content/1/protestantismo_e_cultura_brasileira_-_zwinglio_mota_dias.htm 02/09/2013.

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